Por Profa. Dra. Rita Peixoto Ferreira Blum e Hélio Ferreira Moraes
Data: 10.07.2019
Qual a finalidade da Nova Lei do Cadastro Positivo? A Lei nº 12.414/2011 visa disciplinar a utilização de “informações positivas” da pessoa natural ou jurídica, seu histórico de adimplemento (pontualidade), ou seja, de “boa pagadora”. Recentemente foi sancionada a Lei Complementar nº 166/2019 que altera dispositivos da Lei de 2011. A modificação mais significativa se refere à inversão de uma regra crucial para o tratamento destes dados. Na versão de 2011 da Lei a pessoa teria que ativamente requerer a inclusão de seu histórico de crédito em aludido cadastro positivo, enquanto que, na nova regra, que passou a viger, ela será notificada da inclusão e, caso não queira que ela ocorra, terá que solicitar isso ao banco de dados gestor, usualmente um “bureau” de informações creditícias. A pessoa titular do dado, portanto, passa a ter o ônus de requerer ao banco de dados de proteção ao crédito esta ação. Trata-se de um opt-out. Como regra (por default) a pessoa terá seus dados de adimplemento incluídos e, se não desejar, solicitará a exclusão dos mesmos. Importante destacar que o banco de dados estará autorizado, transcorridos um certo tempo da inclusão, detalhado abaixo, a fornecer a terceiro consulente a “nota ou pontuação do crédito”, elaborada com base nas informações de adimplemento armazenadas, apenas, o histórico em si (conceituado abaixo) ainda dependerá de prévia autorização específica do cadastrado.
Qual o motivo para surgimento em 2011 da Lei do Cadastro Positivo? De acordo com as razões expostas no projeto de lei que levou originalmente a ela, a mesma visava: (i) dar mais informações para as instituições financeiras que atuem concedendo crédito, que passariam a ter mais elementos sobre o conjunto de dados financeiros de operações de crédito e de pagamentos adimplidos ou em andamento pela pessoa (“histórico de crédito”), quando esta viesse a solicitar um novo empréstimo no mercado a alguma instituição desta natureza ou afim; e (ii) em tese, este “dado positivo” (de adimplemento) de posse do potencial credor, reverter-se-ia em facilidade de acesso a um novo crédito e/ou taxa de juros mais baixa, uma vez que o risco deste potencial tomador de crédito vir a não pagar é menor do que o de uma pessoa a respeito da qual a instituição não possui referido histórico de crédito. Esta razão por trás da mente do legislador (mens legis) se mantém porque ao final da Lei Complementar nº 166/2019, consta que o Banco Central do Brasil (BACEN) deverá encaminhar ao Congresso Nacional 24 meses contados de 08/04/2019 relatório com os resultados alcançados com as alterações do cadastro positivo, com ênfase na redução ou aumento do spread bancário, para fins de reavaliação legislativa.
Por que a Lei de 2011 veio a ser alterada em 2019? O texto da Lei original, como se diz no jargão popular, “não pegou”. As hipóteses para isso são: falta de conhecimento da pessoa (ex. consumidor) potencial tomadora de crédito da possibilidade de se beneficiar com o cadastro; desconfiança desta em relação à consequência de expor este seu dado financeiro, em um país com as características e índice de criminalidade do Brasil; o fato de ter de partir de uma iniciativa dela; e, ainda, eventual desconfiança sobre se realmente a inclusão reverteria para ela (pessoa) uma efetiva redução de juros bancários. Conforme informação obtida no XIV Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor, realizado em maio de 2018 (sete anos após a entrada em vigor da Lei) na prática a adesão foi, até então, da ordem de 5% (cinco por cento), apenas. Com a crise econômica de 2014 a 2017 uma medida, em 2019, que possa facilitar o acesso ao crédito a algumas pessoas, acredita-se que seja positiva. Um estímulo ao consumo com consequente maior movimentação da economia.
Como fica a conciliação desta nova regra com a LGPD? Dado pessoal, de acordo com a LGPD é informação de pessoa natural que direta ou indiretamente a identifique. O histórico de crédito se encaixa neste conceito e, portanto, está protegido pela LGPD (além de também estar pelo Código de Defesa do Consumidor). Porém, o consentimento, em que pese ser a principal regra para o tratamento, a partir de agosto de 2020, quando a LGPD entrará integralmente em vigor, conviverá com outras hipóteses de tratamento lícito de dado pessoal. O Projeto da Lei de Geral Proteção de Dados que tramitou paralelamente à alteração recente na Lei do Cadastro Positivo levou a um texto final de LGPD em que se contemplou, dentre as hipóteses lícitas de tratamento a: “proteção ao crédito, inclusive quanto ao disposto na legislação pertinente” (inciso do art. 7º da LGPD).
A pessoa cadastrada será informada da inclusão de seu “histórico de crédito” no cadastro positivo? Sim, a Lei que alterou o cadastro positivo determina que o cadastrado seja comunicado, em até 30 dias da abertura, sem custo para ele. Para o envio da comunicação devem ser utilizados dados pessoais como endereço residencial, comercial ou eletrônico, fornecidos pelo cadastrado à fonte (adiante conceituada). A comunicação não será necessária se ele já tiver cadastro aberto em outro banco de dados. Esta comunicação deverá ser realizada pelo gestor ou pela fonte. Gestor é a pessoa jurídica responsável pelo banco de dados, bem como pela coleta pelo armazenamento, pela análise e pelo acesso de terceiros aos dados armazenados; e fonte é a pessoa natural ou jurídica que conceda crédito, administre operações de autofinanciamento ou realiza venda a prazo ou outras transações comerciais e empresariais que impliquem, para ela, risco financeiro, inclusive as instituições autorizadas a funcionar pelo BACEN e os prestadores de serviços continuados de água, esgoto, eletricidade, gás, telecomunicações e assemelhados.
Se o cadastrado não desejar que se mantenha esta inclusão, como ele deverá proceder? A Lei em comento prevê a possibilidade de que ele solicite a sua exclusão do cadastro, de forma gratuita, devendo ser informado sobre quais os canais disponíveis para tanto. O gestor deve proceder automaticamente ao cancelamento de pessoa natural ou jurídica que tenha manifestado previamente, por meio telefônico, físico ou eletrônico, a vontade de não ter aberto seu cadastro.
As informações sobre nota de crédito são disponibilizadas a consulentes tão logo incluídas no banco de dados? Não. Como o cadastrado poderá exercer o direito acima, esta informação a respeito dele somente poderá ser disponibilizada 60 dias após a abertura do cadastro e, claro, se ele não se opuser ao cadastramento, após ter recebido a comunicação tratada acima.
Qual a natureza da responsabilidade civil por danos da fonte do dado e do banco de dados, que emite a nota ou pontuação de crédito? De acordo com a Lei, o banco de dados, a fonte e o consulente são responsáveis objetiva e solidariamente, pelos danos materiais e morais que causarem ao cadastrado, nos termos do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990). Neste ponto a Lei em comento difere da regra da LGPD, que tem um Capítulo disciplinando de maneira detalhada e sensivelmente diferente do CDC o tema da responsabilidade do agente de tratamento (do controlador e do operador) do dado. Para detalhes desta disciplina, que foge ao objeto deste newsletter dada a profundidade, consulte os artigos 5º, e 37 a 40 da LGPD.
Quais pontos além dos já tratados acima são potencialmente mais polêmicos? A Lei do Cadastro Positivo menciona 10 dias para correção de informação apontada pelo cadastrado como errônea, enquanto a LGPD menciona que para anteder a pedido de correção de dados incompletos, inexatos ou desatualizados o agente de tratamento a qual foi direcionado o pedido e que estiver impossibilidade de o atender imediatamente observará o prazo a ser definido em regulamento (art. 18 da LGPD). No caso de pedido de cancelamento também há dissonância. A Lei do Cadastro Positivo menciona 02 dias úteis para o gestor, que receber a solicitação do cadastrado, transmita a solicitação aos demais gestores e atenda a solicitação no mesmo prazo, enquanto que a LGPD ainda dependerá de um regulamento, conforme a regra descrita anteriormente. Como lex speciali derogat generali (princípio da especialidade), é defensável o argumento de que, no caso dos dados de adimplemento arquivados e aos quais o cadastrado terá acessos, os prazos que irão prevalecer, nestas hipóteses, serão o da nova Lei ora em comento. Outro ponto de atenção é que segundo a Lei do Cadastro Positivo há a possibilidade de que sejam utilizadas informações de parentes do cadastrado que tenham com ele relação de parentesco até primeiro grau ou de dependência econômica.
Conclusão. O tema dos dados pessoais vem se tornando cada vez mais importante, em especial quando são sobre pessoa natural. Se por um lado seu tratamento pode causar danos, por outro poder influenciar a economia do país, muito necessitada de estímulo, beneficiando pessoas que são boas pagadoras, por exemplo com a redução de juros. Por ser um tema relevante mais de um setor econômico é afetado e em que pese haver dispositivo na LGPD que permita um diálogo desta com a Lei do Cadastro Positivo, recentemente “repaginada”, cabe aos operadores do direito, aqui incluindo a recentemente criada Autoridade Nacional de Proteção de Dados, e ao mercado papel importante na aplicação destas ferramentas legais novas, para que sejam bem compreendidas por todos, em especial pelos titulares de dado, e “peguem” de forma positiva.
Sobre os autores:
Profa. Dra. Rita Peixoto Ferreira Blum – doutora e mestre em Direito na área do direito do consumidor, proteção de dados e privacidade pela PUC/SP. Autora do livro O Direito à Privacidade e à Proteção de Dados do Consumidor (Ed. Almedina – ano 2018) e do livro Direito do Consumidor na Internet (Ed. Quartier Latin – ano 2002). Atua como Consultora Jurídica Sênior na área de Proteção de Dados no PK Advogados e como Professora em cursos de especialização da área.
Hélio Ferreira Moraes – https://www.linkedin.com/in/heliomoraes/ – sócio do PK Advogados na área de tecnologia e inovação. Engenheiro Eletrônico pela Escola Politécnica da USP (1990) e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco da USP (1995). Autor de diversos artigos e coautor do livro “Direitos e aspectos econômicos na sociedade da informação” (2013), possuindo atividade extensa como palestrante no Brasil e no exterior.