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Como as empresas podem terceirizar atividades e utilizar conceitos da “Gig Economy” sem aumentar os riscos trabalhistas

 

Diversas decisões proferidas, tanto na Justiça do Trabalho em 1ª e 2ª Instâncias, quanto na Justiça Comum, deixaram as empresas em uma situação de insegurança jurídica muito grande, especialmente aquelas que contratam profissionais terceirizados, que utilizam serviços de freelancers e, mais especialmente, todas as empresas que atuam na chamada “Gig Economy”, conceito que explicaremos adiante.

Ocorre que esta não é uma situação que acontece apenas no Brasil, mas está sendo discutidas em diversos lugares no mundo, como uma reflexão sobre o cenário atual da economia e a silenciosa revolução que vem ocorrendo no mercado de trabalho desde a crise de 2008.

Deixando a questão filosófica de lado, esse artigo se propõe a analisar tecnicamente qual é a lei aplicável este novo modelo de contratação e quais os cuidados que as empresas devem ter para não deturpar o modelo e acabar implementando situações que levem, por exemplo, à configuração de uma relação com vínculo empregatício.

O conceito de Gig Economy

Primeiramente, é necessário delimitar o escopo do que será tratado no presente artigo, uma vez que o principal erro de muitas análises é a generalização e a consequente confusão entre situações totalmente diferentes.

Pois bem, do ponto de vista do mercado, se a pessoa trabalha como freelancer, trabalhador temporário, terceirizado ou contratado independente, ou se a pessoa faz trabalhos paralelos como fonte de renda, ela faz parte da “Gig Economy”.

Para esclarecer melhor, a tradução da palavra “Gig”, neste contexto, seria equivalente ao “bico”, expressão usada no Brasil para se referir a pequenos serviços temporários.

Portanto, embora não exista uma definição perfeita que explique a Gig Economy, podemos dizer que é a situação onde as pessoas são contratadas para realizar tarefas projeto por projeto ou cliente por cliente, ao invés de trabalhar regularmente para um único empregador.

Alguns exemplos de atividades que são incluídas no modelo de Gig Economy:

  • Motoristas de aplicativos como Uber, 99 ou Cabify;
  • Qualquer freelancer, como escritor, fotógrafo, consultor, programador, designer ou jornalista;
  • Entregadores de aplicativos como IFood, Rappi ou Uber Eats;
  • Profissionais técnicos diversos de aplicativos como GetNinjas;
  • Profissionais de faxina de aplicativos como Diaríssima;
  • Dog walkers de aplicativos como DogHero;
  • Manicures e profissionais de beleza de aplicativos como ClickNails;
  • Alguém que aluga um quarto disponível através de um site como o Airbnb;
  • Muitos outros…

Em resumo, o mercado inclui uma enorme variedade de atividades na Gig Economy e, via de regra, se aplica a situações em que a pessoa quase sempre é um “contratado independente” e não um empregado.

No entanto, a diferença entre os dois é muito importante. E é aqui que a análise técnica faz a diferença.

Requisitos para configurar vínculo de emprego

De maneira simplificada, podemos dizer que um empregado é alguém que trabalha para o mesmo empregador regularmente e que não fornece o trabalho como parte dos negócios da empresa.

Já o “contratado independente” é alguém que trabalha apenas quando necessário para outro, de acordo com um acordo ou contrato.

Em outras palavras, um contratado independente geralmente trabalha para si mesmo, enquanto um empregado trabalha para seu empregador.

Para diferenciar as duas situações, a lei considera principalmente o nível de controle que o empregador exerce sobre a pessoa. De um modo geral, quanto mais controle um empregador tem sobre como o trabalho é realizado, maior a probabilidade de a pessoa ser considerada um empregado e não um contratado independente.

No direito brasileiro, a CLT estabelece os seguintes requisitos para o reconhecimento do vínculo de emprego entre a pessoa e a empresa:

  • Serviço prestado por pessoa física (não pode ser empresa contratando empresa)
  • Pessoalidade (o trabalho deve ser realizado pela pessoa, ou seja, ela não pode mandar alguém para substitui-la)
  • Subordinação (a pessoa deve acatar as ordens e determinações do empregador)
  • Onerosidade (o serviço prestado deve ser pago em dinheiro)
  • Não eventualidade ou habitualidade (o trabalho deve ser feito de forma contínua e permanente)
  • Alteridade (os riscos empresarias são exclusivos do empregador)

Portanto, quando todos esses requisitos estiverem presentes na relação entre a pessoa e a empresa, deve ser reconhecido o vínculo de emprego e aplicada a CLT como conjunto de regras que irá nortear a relação, em especial no que se refere aos direitos do empregado, como férias, 13º salário, entre outros.

Vantagens e desvantagens para os prestadores de serviço

Embora para muitos a não aplicabilidade da CLT e, consequentemente, dos direitos nela previstos, possa ser visto como uma situação menos atraente para os profissionais que atuam na Gig Economy, não só desvantagens que esse modelo apresenta.

De fato, os profissionais que atuam na Gig Economy possuem poucos ou nenhum benefício, como férias, seguro de saúde ou benefícios de aposentadoria, bem como elegibilidade para licença paternidade ou maternidade e seguro desemprego.

No entanto, pelo fato de não estarem subordinados às ordens da empresa empregadora, possuem como vantagem a flexibilidade de trabalhar seu próprio horário, a capacidade de escolher exatamente o tipo de trabalho que você deseja fazer, a opção de escolher entre várias plataformas para oferecer seus serviços e a capacidade de trabalhar para si e não para outra pessoa.

Desse modo, há que se concluir que a Gig Economy pode não oferecer algumas das condições apreciadas por parte das pessoas, como segurança e proteção, como as existentes nas relações com vínculo de emprego. Todavia, oferecem algumas das condições apreciadas por outra parte das pessoas, como flexibilidade e autonomia, algo que é comum em pessoas das gerações mais recentes, como Geração X e os Millenials.

Vantagens e desvantagens para as empresas

Por outro lado, é comum as pessoas associarem a Gig Economy como sendo uma modelagem de negócios que só proporciona vantagens para as empresas e que, em um futuro próximo, todas as empresas tendem a migrar para esse sistema, resultando na degradação total dos direitos trabalhistas etc.

Nada pode estar mais longe da verdade do que essa crença.

De fato, não há como negar que ao contratar um freelancer ao invés de um empregado, por exemplo, a empresa reduz significativamente o pagamento de impostos, bem como os custos com o pagamento de benefícios, como plano de saúde.

Outras vantagens incluem a desnecessidade de pagar um salário mínimo, bem como férias, horas extras e descanso semanal remunerado.

No entanto, há desvantagens típicas do uso de freelancers ou contratados independentes ao invés de empregados, tais como o menor controle sobre como o trabalho é realizado, responsabilidade potencial pelo trabalho mal executado e a maior dificuldade ou inconveniência de encontrar periodicamente novos profissionais competentes.

Para ilustrar, vejamos o caso do Uber. Desde a sua concepção, a empresa foi pensada para ser uma plataforma de aproximação entre motoristas e passageiros, sendo que esses primeiros seriam profissionais autônomos que se registrariam no aplicativo para oferecer seus serviços quando bem entendessem.

No entanto, a empresa possui mais de 27.000 pessoas ao redor do mundo contratadas como empregados, uma vez que nenhuma empresa contrataria um no modelo freelancer ou autônomo os seus principais programadores, o diretor financeiro ou os departamentos jurídico e de recursos humanos.

Além disso, o Uber já sofreu com o mau comportamento de alguns desses motoristas autônomos. Para o próprio ou para uma empresa concorrente no mesmo setor, pode ser que no futuro seja mais interessante ter menos motoristas, porém todos como empregados, que sigam suas ordens e controle.

Portanto, há que se concluir que o modelo Gig Economy não traz apenas vantagens para as empresas e que, considerando vantagens e desvantagens, será apenas mais um modelo que poderá ser ou não adotado pelas empresas, a depender da sua estratégia, do modelo de negócio e outras variáveis.

De nenhuma maneira a Gig Economy, no cenário atual, se apresenta como um risco para o fim do modelo de relação de emprego com subordinação e direitos como conhecemos até aqui.

Leis aplicáveis às relações na Gig Economy

Diante das diferenças apresentadas e considerando que não se aplica a CLT às relações em que, de fato, se configura a Gig Economy, isso não significa que os profissionais que atuam nesse modelo estão descobertos legalmente e não possuem direitos.

A depender, obviamente, dos detalhes de cada modelo e das características de cada empresa, a relação entre ela e os contratados poderá ser regida pelo Código Civil, observando-se os deveres e direitos aplicáveis às relações comerciais.

Em outras situações, as características da contratação podem configurar uma contratação de trabalho temporário, que também possui legislação própria, bem como deveres e direitos específicos.

Como evitar os riscos

Conforme mencionamos, não é possível fornecer uma receita que possa ser aplicada a qualquer empresa, pois muitas são as variáveis que influenciam no reconhecimento ou não do vínculo de emprego ou na caracterização como trabalhado temporário etc.

De forma geral, nossa experiência mostra que se uma empresa deseja adotar o modelo de Gig Economy em parte da sua atividade, ela pode exigir cadastro pessoal e intransferível, definir o valor do serviço, orientar sobre como o serviço deve ser prestado, definir taxa fixa de intermediação, receber diretamente o valor pago pelo serviço, fazer campanhas de incentivo e excluir usuários por mau uso da plataforma.

Por outro lado, não é recomendável que a empresa disponibilize os meios para a prestação do serviço (ex.: um carro para um motorista), envie ordens diretas, aplique penalidades caso o profissional não cumpra as ordens, exija frequência mínima, controle diretamente a forma como são prestados os serviços, exclua o profissional da plataforma com base na avaliação de usuários apenas ou realize promoções que obriguem o profissional a utilizar a plataforma por períodos determinados.

Esses são apenas alguns exemplos, porém cada empresa deve fazer uma análise minuciosa, não apenas do modelo geral de contratação desses profissionais autônomos, mas também no dia-a-dia, pois como vimos, até mesmo algumas modalidades de “promoções” podem ameaçar todo o modelo de contratação e colocar a empresa em risco.

Projeções para o futuro

Notícias recentes apontam que a tendência será, em breve, a criação de leis específicas para regular as relações da Gig Economy, uma vez que está se tornando cada vez mais frequente o cenário em que o “bico” se torna a principal fonte de renda do profissional e, para sobreviver, muitas pessoas estão se colocando em situações degradantes, como longas jornadas de trabalho e abuso de medicamentos para melhorar o seu desempenho.

Um dos caminhos, como o escolhido pelos legisladores da Califórnia, é aprovar uma lei que exige que empresas como Uber e Lyft tratem os profissionais contratados como funcionários, uma medida que pode remodelar a Gig Economy.

Os efeitos já sentidos até o momento foram, do lado das empresas, a adoção de medidas para exercer maior controle sobre a atividade e sobre os profissionais, tais como limitar o número de motoristas que podem trabalhar durante horas de menor demanda ou em localidades menos movimentada.

Além disso, Uber e Lyft alertaram que terão que começar a programar os motoristas com antecedência se forem empregados, reduzindo a capacidade dos motoristas de trabalhar quando e onde quiserem.

Em razão disso, a lei que antes era universalmente aceita pelos motoristas, passou a gerar queixa de alguns que se preocuparam com a dificuldade de manter um horário flexível ou a redução da necessidade de motoristas em geral.

Em outra tentativa de adequação, o Uber está testando na Califórnia um modelo que permite que os motoristas definam os preços das corridas. Embora essa seja uma alternativa interessante para aumentar a autonomia dos profissionais, pode não ser muito bem aceita pelos passageiros.

Por fim, a cidade de Nova York implementou apenas um salário mínimo para os motoristas de aplicativo, mas optou por não classificar a relação deles como vínculo de emprego.

No Brasil, já há uma iniciativa legislativa para realizar a regulamentação do setor, que aqui é chamado de economia colaborativa (ou compartilhada).

Foi criada na Câmara dos Deputados a Comissão Especial do Marco Regulatório da Economia Colaborativa, que já reconheceu que como o setor é muito diversificado, provavelmente não teremos uma lei específica igual para todos.

Esse é o caminho escolhido pela União Europeia (UE), que formulou leis específicas para cada caso.

A comissão já fez dez audiências públicas e ouviu mais de 40 segmentos da economia colaborativa na difícil tarefa de formular a regulamentação do setor.

Além disso, há também uma iniciativa que tem sido chamada de “Marco Civil das Startups” que, entre outras questões, pretende flexibilizar as regras trabalhistas para esse modelo de empresas que, na maioria das vezes, não possui recursos para contratar todos os profissionais necessários no modelo CLT.

No entanto, esse projeto também concluiu há poucos meses uma primeira audiência pública e não há, ainda, indícios de que ele regulamentará o modelo de economia colaborativa.

Portanto, é possível se afirmar que no futuro próximo, alguma forma de benefício para essa população de profissionais de aplicativos parece inevitável e, para o benefício mútuo, é importante que seja uma solução ponderada que equilibre certa flexibilidade com um padrão razoável de ganhos e benefícios.

Conclusão

Podemos concluir que, enquanto a regulamentação específica para o setor não chega, as empresas devem tomar muito cuidado no momento de adotar o modelo de Gig Economy ou economia compartilhada, bem como para fazer qualquer contratação que não seja no modelo CLT, pois são muitas as condições que precisam ser verificadas.

Lembrando que, de uma forma bastante resumida, o modelo de Gig Economy pressupõe que os profissionais não trabalhem permanentemente para um único empregador, mas trabalhem para si mesmos, trabalhem por projeto ou cliente por cliente.

A principal questão a ser verificada é o maior ou menor nível de controle da empresa sobre como o trabalho realizado.

Finalmente, vale ressaltar que especialmente em relação à atuação profissional pelo sistema de aplicativos, o Tribunal Superior do Trabalho já manifestou  no sentido de que motoristas tem autonomia e flexibilidade incompatíveis com vínculo empregatício, enfatizando que a proteção ao trabalhador não deve se sobrepor a ponto de inviabilizar as formas de trabalho inovadoras, praticadas com maior autonomia, mediante livre disposição das Partes.

Caso tenha dúvidas sobre a adoção do modelo ou a realização de uma campanha promocional específica, nossos especialistas em direito do trabalho estão à disposição para orientar a sua empresa na tomada da decisão mais adequada.

Por Mauro Martins

 

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